terça-feira, 10 de maio de 2016

O dia que não lembro

Eu não lembro de quando eu morri. E isso é muito chato, de verdade mesmo. Eu tenho estado bem ruim de memória. Não consigo lembrar de datas e sou péssimo com nomes, mas não acho que morrer tem algo a ver com isso, afinal, muita gente é assim desde sempre. Sem contar que eu só estou morto há uma semana, não acho que isso vá influenciar na minha memória. Eu não sei porque insisto em pensar nisso, quer dizer... eu sei... foi por causa do cara que me assaltou. Engraçado que na hora me veio aquela sensação de “dejavu”, e ao mesmo tempo eu não estava mais ali, eu via tudo de fora, ai ele disse as palavras que retomaram minha atenção:
- bla bla blá, SE NÃO, VAI MORRER, aqui mesmo...
Que irônico, eu tinha quase certeza que não ia morrer mesmo, mas ele tinha uma faca, então dei o “celular do ladrão” pro cara, talvez ele precisasse mais do que eu; esse é um pensamento bem idiota, mas eu estou tentando mudar, também estou tentando desapegar, é aquela velha frase: “caixão não tem gaveta” ... Continuo meu caminho para casa e os pensamentos me inundam.
Não sei o que me incomodou mais, se a ameaça que pareceu vazia, ou a chance de ser um corpo jogado na rua, uma “vítima dos nossos tempos difíceis”, mais um número para preencher a estatística. Isso me faz refletir agora. Muitas pessoas morrem, e muitas morrem de maneira estúpida, por um idiota qualquer. Muitas vezes não tem nada daquela coisa dos “tons de cinza”, o cara não está “tentando sobreviver e aquele é seu último recurso”; não, nem sempre é isso, aquele cara parecia ser totalmente cinza, ele já não se importava com nada. Preferi ceder. Outras alternativas mal faziam sentido. Mas isso não importa. Estou em casa agora. Tirar os sapatos é minha maior preocupação.
Preciso me sentar; caramba... pensar demais sempre me deixa mal.
Eu não queria ficar depressivo, não hoje em especial, afinal estou “não morto” há uma semana, é um novo aniversário a se comemorar, é uma data de recomeços é um novo começo, afinal a vida está só... que droga, fiz de novo, agora vou ficar pensando na morte... Que droga, vou ficar pensando NA MINHA morte. Eu não sei se queria mesmo me lembrar disso...
(Uma semana atrás:)
Dia 1:
Minha casa está escura, sei que é madrugada, um pouco da luz de fora entra em casa. Me levanto do chão com dificuldade, meio que sinto um pouco de dormência no corpo. Meu braço esquerdo tem um corte, eu sinto quando coloco a mão. Estou de joelhos no chão, olho em volta, tento entender o que aconteceu. Me levanto, sento no sofá. Meu computador está ligado. Olho com atenção o que tem na tela: DOWNLOAD CONCLUÍDO - bem poderei assistir mais uma temporada da minha série agora, só preciso arranjar um tempo. Meu lado esquerdo inteiro parece dormente. Coloco a mão em meu peito. Mais abaixo, um corte superficial eu acho, não lembro de nenhuma cicatriz ali antes. Eu respiro fundo, começo a ficar muito nervoso, a luz do monitor ilumina o corte no meu braço, caramba, eu devo ter perdido muito sangue. Que droga não é só um corte... Não lembro do que aconteceu...
Por que eu estava no chão? Caramba eu desmaiei? Eu acho que não posso ver sangue!
Não consigo lembrar direito...
O corte está fechado, meio avermelhado. Não sinto dor, na verdade eu não sinto mesmo nenhuma dor, só um incomodo, será a luz? É um desconforto bem chato. Me levanto, onde está o interruptor? Pronto, “que se faça luz” ...
Mas quanta bagunça. Eu estava mexendo nos meus livros? E todos esses papeis no chão, e mais embalagens... e eu vou ter que limpar. Se bem que até ai é normal, eu apenas não consigo lembrar direito. Olho de novo para o meu braço, Caramba como eu pude fazer isso?
A porta está só encostada, isso é um grande erro! Mas a casa parece o.k. Preciso ir no banheiro. Papel com sangue no lixeiro, e um balde com minha camisa na pia. Um bom sinal, sou alguém organizado mesmo quando estou desmaiando. Tem sangue na pia. Então eu me limpei, troquei a camisa manchada, e só ai fui parar no chão. Legal. Vou deixar essa camisa de molho mesmo.
Preciso me sentar. Isso é muito perigoso, numa dessas eu morro... haha! Eu sorrio pra mim mesmo, estou nervoso comigo mesmo, olho de novo meu braço, preciso de alguma coisa pra cobrir isso.
Mas como “isso” aconteceu? Nenhuma mensagem no celular... isso é bom? Eu devia mandar algo pra alguém né? Será que tem alguém online? É madrugada, melhor deixar pra lá. Faz tempo que não respondo ninguém mesmo.
Não consigo dormir. Enfaixo meu braço com uma camisa qualquer, e vou assistir mais alguma coisa no computador, com sorte pego no sono.
O celular despertou, 06:30 am. Alarme desligado. O lado bom é que maratonei minha série, o ruim é que não prestei muita atenção nesse último episódio, e que legenda errada, dia desses, quando eu tiver tempo, vou me juntar a um desses grupos que fazem legenda pra consertar isso. Todos merecem uma legenda de qualidade... haha, que idiotice...
Me sinto estranho, evito pensar de mais, bem de qualquer forma, acho que já posso responder todo mundo, um bom dia seguido de “emoticons” de gatinhos, eles vão adorar, nem vão reclamar por estar respondendo só agora essas mensagens antigas...
- ATRASADO!
Caramba, como a pessoa ainda reclama, por eu ter respondido?! podia muito bem ter ficado sem falar nunca mais! E se eu não respondi por algum motivo importante? E se eu morresse? Será que alguém ligaria? Chega de pensamentos idiotas. Ainda é muito cedo. Que droga não quero tomar banho, eu não quero olhar essas cicatrizes. Mas elas não estão doendo ainda. Será que eu tomei alguma coisa? Ai meu Deus. E se eu tomei alguma coisa e agora eu ‘tô assim; quando o efeito passar vou ficar uma droga.
Preciso de música.
-Little Talks – Of Monsters and Men. - pronto, é um bom começo!
Termino de me arrumar, ouvindo o refrão. Música boa. Estou pronto pra mais um dia. Eu estou dizendo isso para mim mesmo...
Todo o bom humor do primeiro do começo do dia foi embora as 09:00 da manhã; eu fui ao trabalho. O resto do dia passou praticamente normal. Hospital, Trabalhar, comer, trabalhar, ir para casa. (Normal exceto pela parte do hospital talvez). Eu olho em volta enquanto
caminho para casa, é um entardecer frio. Todo mundo centrado em suas próprias “missões pessoais”, eu sinto que conheço aquela pessoa de algum lugar... eu não enxergo bem, preciso de óculos novos... Onde estão meus óculos? ... Ela não me reconhece, ou talvez não me viu direito. Normal.
Não olho mais o celular quando chego em casa. Preciso me sentar. Gasto apenas dois minutos mudando os canais na TV. Eu me deito, coloco músicas aleatórias. Acabo dormindo.
Dia 2
Acordo de madrugada. Um incomodo novamente. Melhor responder as pessoas no celular. Nossa, nunca vou conseguir acompanhar essas conversas nesses grupos. Não vale a pena. Deixo o celular em cima da cama. Me levanto. Acendo as luzes, mas não sei o que eu estou procurando...
Adoro meus livros. Tento me apegar a esses pensamentos bobos. Meu braço está ardendo. Não! O “corte” no meu braço está ardendo. Lembro da cara da moça no hospital quando ela deu os pontos no meu braço. Ela queria muito saber o que aconteceu de verdade. Mas eu também queria.
Ligo a TV”. Porque eu ainda faço isso?
Volto para a internet. Me entretenha, é quase como uma ordem dada a mim mesmo. 20 minutos, passam voando. 1 hora depois e eu estou aqui, ainda cansado, ainda sem vontade de dormir, ainda “incomodado”, mas posso dizer que me entretive, durante esse tempo.
Preciso fazer alguma coisa... Começo a pensar nas coisas que eu deveria fazer... a que droga, é uma sensação horrível, sinto uma leve falta de ar. Eu deveria ser tão diferente. Como acabei assim? Porque eu não faço nada? Droga. Meu coração bate rápido. Continuo me cobrando. E continuo sentindo esse desconforto. É quase como uma espécie de dor. Mas eu simplesmente não consigo fazer nada. Se continuar assim, vou começar a chorar. Que loucura... Eu não suporto isso!
Me levanto, volto a minha cama, puxo um lençol, mexo no travesseiro, arrasto outro lençol. Porque eu estou dobrando isso? Porque eu estou arrumando minha cama, as 05 horas da manhã?
Agora está tudo mais ou menos arrumado. Relativamente limpo. Bem vou tentar ler. É o que me resta fazer...
Fico feliz por colocar alguma leitura em dia.
Eu ouço o despertador do celular. Me levanto, vou até ele. Desligo. Minha rotina volta a acontecer. Eu quase consigo ignorar meu braço enfaixado. Eu me esforço para isso na verdade. Evito pensar sobre isso. Música, isso sempre ajuda.
- No One Knows – Queens of The Stone Age.
Agora sim, minha cabeça está longe. Eu continuo fazendo tudo quase que de modo automático. Apenas paro para trocar algumas faixas da lista de reprodução. E quando dou por mim, lá estou eu de volta ao meu trabalho. Estou decidido a fazer alguma coisa, a tentar algo. Eu tento cumprir minhas obrigações de forma exemplar. Já é alguma coisa. Chego a quase me sentir melhor. E então meu braço dói um pouco.
O pensamento é algo muito interessante, não existe isso de não pensar em nada. Porque nessa hora, você está pensando em muitas coisas, elas só talvez não façam mesmo muito sentido, pois você fica trocando de pensamentos, e uma coisa que se liga a outra, puxa outra, e de repente eu me vejo pensando em como eu acabei assim, dessa vez não é um pensamento filosófico, eu realmente tento forçar a mente para antes de acordar no chão da minha casa de madrugada. Eu vejo flashes de acontecimentos, cenas se passando rapidamente, mas não sei distinguir se são mesmo reais, muitas delas parecem só repetições. Balanço a cabeça, tentando fugir desse sentimento... Eu estou bem, tenho um trabalho que me ajuda a pagar as coisas das quais preciso; Meus amigos estão bem também, eu vi na internet eu acho, com certeza eu devo ter curtido algumas coisas que eles postaram e pareciam bem.
Saio finalmente desses pensamentos, é hora de ir embora. No transporte eu ouço músicas enquanto observo as pessoas. Um belo videoclipe acabei de elaborar. Quem sabe um dia faça ele de verdade. Eu fico ensaiando sorrisos, lembrando de coisas muito antigas enquanto reparo as ações das pessoas. Hoje está tudo calmo, as maiores confusões são minhas e internas, todos parecem bem, apenas cansados talvez, eu não sou o único em silencio
observando, e isso é bom, eles parecem estar longe, pensando no que vão fazer a seguir. Eu também não tenho mais planos.
Dia 3
E se eu estiver morto?
Eu cheguei a uma conclusão, há muito tempo atrás, de que a morte é a finitude de tudo que existe, ela é o nada, em sua essência, ela é o vazio. Os suicidas quando optam pela morte, buscam de certa forma uma escapatória, pois eles já não conseguem permanecer diante de todos os seus problemas, minha maior questão na época era se eles queriam esse “nada”, para mim o vazio era mais assustador ainda. Maior que o medo de qualquer problema, maior que as consequências que eles trazem, maior que as dúvidas do dia a dia, o vazio é maior e engole tudo, e nada mais existe. Não, o próprio nada em absoluto é o que existe. E isso me assustava.
Eu posso ser considerado uma pessoa errada por estar “julgando”, e simplificando a questão do suicídio. Esse tema é muito pesado. Mas eu não estou fazendo nada que todo mundo já não tenha feito. As pessoas simplificam as consequências dos problemas, levando em conta as perdas que podem acontecer ao enfrenta-los, ou os caminhos que devem ser tomados para contorna-los. É muito estranho, pois o que as pessoas não aceitam é a questão mais simples na verdade, eles não compreendem que alguns de nós, simplesmente não conseguem enfrentar, e as consequências virão Disso. Este é o fato. Não adianta apontar e motivar, ou mesmo mostrar quão bom vai ser para alguém quando ela superar alguma situação, pois o que vai levar ela “aos finalmentes”, é o “simples fato” de que ela não consegue fazer nada, ela possivelmente nem vê sentido em mais nada, e a depressão surge dessa incapacidade, a ansiedade, por outro lado, vem das soluções possíveis, e no fim ao juntar isso tudo numa pessoa só... você terá divagações sobre o “fim”.
São 05:30 am, estou acordado desde as quatro. Fico pensando que eu poderia já estar morto. A morte é o nada, o vazio, e eu estou a muito tempo me preenchendo de toda forma possível com tudo o que eu vejo. Eu tento consumir cada vez mais, mais livros, mais filmes, falar com mais pessoas, assumir mais trabalhos, criar novos objetivos... Eu estou desesperadamente tentando evitar o vazio, pois
ele me assunta mais que qualquer coisa. Mas eu continuo sentindo ele tão próximo.
Me levanto trancando todos esses pensamentos. É hora de “ficar de boa”, chega de todas as bobagens. Logo me apronto para sair e cada, estou horas adiantado, e o clima ainda está frio, perfeito para caminhar.
Não tenho pressa, sorrio para as pessoas por quem passo. É estranho pensar o quão próximo e ao mesmo tempo distante pode se estar de alguém. Estamos ali vivendo na mesma cidade, bairro ou rua, mas não a mesma vida. Isso nunca, de jeito nenhum.
Tenho tempo de parar na padaria, o cheiro de pão é muito sedutor. Impossível não te deixar feliz na hora. Sou interrompido do meu transe com uma voz familiar:
- Ei, há quanto tempo?
- Ei, muito mesmo...
Não consigo reconhecer na hora, mas ela não parece ter dúvidas de quem eu sou. Tento reagir o mais natural possível, nos abraçamos, e falamos amenidades. É tão bom reencontrar alguém dos velhos tempos. “Descubro” que estudamos juntos, e já não nos víamos há pelo menos 5 anos. Nossa, o tempo passa, e nem percebemos. Fico feliz de saber que ela está bem, se casou e tem filhos pequenos. Me parece uma ótima vida.

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